A estrutura e seus lugares: uma questão a ser interpretada.
Há o Real em jogo na formação do psicanalista. O real, vale lembrar, "aquilo que não cessa de não se inscrever".
Na ata de fundação da Escola Freudiana de Paris, Lacan estabelecerá aquilo que irá assegurar o funcionamento de sua Escola e a formação dos psicanalistas. O que não contradiz o que dirá num outro momento sobre a formação do psicanalista, ou seja, que ele nunca falou sobre a formação do psicanalista e sim sobre as formações do inconsciente, quais sejam, os sonhos, o sintoma, o chiste e o ato falho. Sobremesa* em nossa mesa, sigo dizendo que, ao psicanalista se impõe o dever ético de se haver com aquilo que o causou enquanto sujeito ao desejo.
De nossa práxis, Freud nos legou, "tomem cada caso como se nada soubessem dos anteriores", onde o saber reinventar o Real da psicanálise, se porá à prova privilegiadamente na clínica com crianças, pois é nesta clínica que o psicanalista é convocado mais radicalmente a não esquecer o que sempre restará nele do infantil. Pois no horror de seu ato comparece o saber sem sujeito que se produz quando o analista articula um significante a outro significante. É um saber que provoca uma fenda no sentido, e por um átimo o analista pode rememorar sua própria constituição, a montagem de sua estrutura e cair no desamparo. Mas o saber sobre o ter sido atravessado pelos elementos que o fundaram, permite que possa fazer neste ato, a identificação e a distinção naquela estrutura que está se constituindo referenciada a um significante, portanto passível de engendrar uma tradução naquele sujeito.
Neste momento, caso o analista não tiver sido atravessado e reconhecido os significantes que o fundaram, não estiver situado quanto aos lugares da estrutura, seu fantasma poderá ser convocado, e sua resistência necessariamente o paralizará.
O caso clínico que exporei aqui, me é bastante caro, pois foi no atendimento a esta criança, que aprendi que a interpretação é ela própria o ato de interpretar os lugares e o tempo da estruturação de um sujeito.
Quando comecei a atender esta criança, a radicalidade do tomar cada caso como se nada soubesse dos anteriores, se impôs a mim. E posso dizer a partir daí que, para que um psicanalista saiba ler a estruturação subjetiva numa criança, é absolutamente necessário tomar como premissa básica, que não haja insuficiência de linguagem para aquele ser, mesmo que ele ainda não fale.
O simbólico pré-existe ao sujeito, antes mesmo de seu nascimento, e é necessário que este sujeito por vir, esteja à espera dele, em algum lugar na fantasia de seus pais, para que ele venha a ocupá-lo primeiramente, para depois fazer-se consistir enquanto falta a ser, para tornar-se um falante. Portanto chamo de criança, aquele sujeito que ainda não adveio, não se estruturou, não realizou a montagem de seu fantasma.
Ao ser relatada a gestação desta criança, pude escutar as dificuldades dos pais em fazê-la consistir simbolicamente: a mãe só pôde perceber que a esperava no 5° mês de gestação. Os enjôos sentidos foram significados como um mal de estômago, a ausência de menstruação devia-se ao fato de estar amamentando sua primogênita, o volume aumentado de seu abdômen era aumento de peso e gazes.
Quando o psicanalista é procurado, o menino está com 2 anos e 7 meses e apresenta os seguintes sintomas: não fala, chora muito, bate continuamente a cabeça na parede, cai no chão como um morto, de olhos e boca abertos, machuca-se muito, caindo, trombando e esconde suas fezes em vários lugares da casa.
Como muitas vezes acontece, já havia passado pelo pediatra, que o encaminhou ao neurologista, onde lhe foram feitas investigações neurológicas e auditivas, este o encaminhou a uma fonoaudióloga. Encontrava-se em tratamento fonoaudiológico há 4 meses, sem que se observasse nenhuma mudança.
Na primeira entrevista, acolhi-o no primeiro instante com meu olhar: vi um lindo menino, naquela imagem que pareceu estar em suspenso, vi sua falta de olhar. Depois, acolhi-o com minha fala, disse-lhe que o escutaría no que quisesse me dizer.
Sublinho aqui o olhar e a voz, por serem os elementos pulsionais que começam a recortar um corpo significante num sujeito por vir, e, se um psicanalista no encontro com uma criança, não puder fazer uma suposição de sujeito, mesmo que sua estrutura não esteja "resolvida", não poderá avessar o método analítico, emprestando-lhe desejo, significantes e imaginário, que é o que se faz necessário em graves patologias infantis.
Este acolhimento, por se diferenciar daquele onde ele estava não implicado, teve efeitos. No momento em que nesta primeira entrevista ele arrastava o cavalinho fazendo um som como se fosse um carro, segui-o com outro cavalo, fazendo o som de pocotó, pocotó.
Ele pára, me olha pela primeira vez, olha os brinquedos e movimenta seu cavalo repetindo a palavra que ofereci, o pocotó. Sua mãe surpreende-se e diz: "ele gosta de você!"
Devo dizer que a aposta imaginária que fiz (a-a'), fazendo a suposição de haver um sujeito, apoiava-se numa teoria e creio absolutamente necessário ao receber uma criança, que o psicanalista tenha clareza sobre o modo de estruturação de um sujeito, para que possa ler as manifestações da criança, distinguindo-as antes que ela mesma possa fazê-lo.
Digo que esse acolhimento se deu de forma diferente, porque este menino viu-se reconhecido desde a primeira entrevista e nas seguintes. Continuou a reconhecer-se e não houve objeção de sua parte de soltar-se dos braços da mãe para entrar comigo na sala, desde chamando-o pelo nome e levando pela mão, passando a entrar quando era chamado pelo nome, até chegar tentar abrir a porta e ficar sentado no chão, colado à porta, esperando eu abrir. Ele se reconhecia.
Paralelamente ao atendimento da criança, propus uma escuta a sua mãe a seu pai, onde estes puderam recortar um lugar outro para este filho, incluindo-o na família de uma outra maneira.
As sessões do menino durante meses se deram em torno de alternâncias, de presença e ausência, esconde-aparece, carrinho vai-carrinho vem, comer o nada e achar delicioso e houve um momento em que ,quando cortei a sessão, ele empurra a porta e diz NÃO e cai como um morto. Olhos e bocas abertos, ao vazio. Apesar de meu horror, aproximei-me e contornando-lhe os olhos com a ponta do dedo disse-lhe: Olhinho do Pedro, olha zangado pra Silvia, que disse para voce ir e você não queria. Boquinha do Pedro, diz pra Silvia que está com raiva porque tem que ir e não quer. Ele me olha sorrindo, levanta-se me abraça com seus bracinhos, se solta e diz: Tau Xilva. E sai.
Depois dessa sessão adquiriu um vocabulário bastante rico e começou por brincar com o proneme pessoal meu, seu e fazer traquinagem com isso, tentando me enganar e quando me vía enganada, caía na risada.
Até que um dia decidiu que não falaria mais errado e quando perguntei o que era isso, ele me disse que não era to que se falava, mas sim, estou.
Um dia, chega no meu consultório dizendo que tinha vindo me dizer que não ía mais voltar. Eu disse que estava tudo bem, então ele me disse que tinha uma história para me contar: "Quando eu era bebezinho, um dia minha mãe me deixou sozinho na pracinha dentro do carrinho. Aí eu caí no chão e todo mundo morreu." Todo mundo quem? Perguntei: "meu pai, minha mãe, todo mundo." E esse pai e mãe que você tem, são aqueles que morreram naquele dia? "sim, mas é que voce estava pasando na pracinha, me viu no chão, me pegou no colo e eu vivi de novo, daí todo mundo viveu de novo" Boquiabri-me.